De Lourdes a Santiago de Compostela

por  OSWALDO BUZZO

26ª Jornada – Feira


Deixei Molinaseca bem cedo, debaixo de uma desconfortável garoa fina. Caminhava taciturno e silencioso, porque a escuridão reinante e a chuva persistente, realçavam o sentimento de melancolia que comumente me assalta nessas horas.

Em Ponferrada o chuvisqueiro arrefeceu, porém, logo após, a cidadezinha de Columbrianos tornou a intensificar. À minha frente, de maneira preocupante, o rufar de uma trovoada soou no céu sobre a cidade de Camponaraya, onde nuvens negras se aglomeravam ameaçadoramente.

À leste, raios riscavam o firmamento, prenuncio certo de procela iminente, forçando-me a estugar os passos. Cacabelos, atualmente, a capital vinícola da região do Bierzo, já estava à vista, quando o temporal desabou.

A capa de chuva comprada a “peso de ouro” vinha resistindo bravamente, entretanto, alguns minutos sob a colossal intempérie deixaram-me completamente ensopado, o que me forçou buscar abrigo num bar próximo.

Aproveitei a pausa forçada para tomar um café com conhaque, o que me reanimou, enquanto lá fora os relâmpagos cruzavam o céu, a chuva batia forte na janela e a tempestade persistia sem nenhum sinal de amainar. Todavia, vinte minutos depois a borrasca perdeu seu ímpeto e pude seguir meu destino.

Avancei, então, calmamente pela “calle de los peregrinos”, com suas seculares casas enfileiradas, e após ultrapassar a Igreja de Nossa Senhora de La Plaza (século XVI), prossegui por um grande pátio asfaltado. Ali acontecia uma enorme feira agrícola-industrial que, infelizmente, tivera seu brilho empanado pelo mau tempo reinante.

Centenas de barracas, das mais variadas cores, tamanhos e formas, ofereciam mercadorias de todos os tipos, desde gêneros alimentícios e bebidas, até maquinários e implementos agrícolas. Segui adiante desviando-me dos passantes que, às centenas, e mesmo de capa ou guarda-chuva, afluiam à concorrida festa. Ao mesmo tempo, observava atentamente, vetustas e singulares construções localizadas à minha direita.

Ao vislumbrarmos lugares antigos, temos a sensação, em certos momentos, que indícios de uma velha presença tomam conta de nós, como fantasmas, em plena luz do dia. Ela apoderou-se de mim quando mais à frente, após transpor o rio Cúa, parei diante de uma igrejinha, com suas portas azuis assombradas por lembranças que não me pertenciam.

Fui irresistivelmente atraído para seu interior, capturado por um estranho sentimento de “déja vu”, e ali pude contemplar pensativo, uma curiosa talha na porta da sacristia, que representa o Menino Jesus jogando cartas com Santo Antonio de Pádua. Na cena o Menino Deus está tirando um quatro de copas da mão do Santo e lhe entregando um cinco de ouros. Segundo os místicos há um significado simbólico: o quatro simboliza os valores mundanos e o cinco o alcance do conhecimento superior.

O ambiente pareceu-me, de repente, inquietantemente familiar. Descobri, então, que me encontrava no Santuário de La Quinta Angústia (século XVII) que, com sua fachada ornamentada, é um belíssimo exemplar do barroco espanhol.

Sentado num banco da capela, observando o Jesus Menino no secular entalhe, fui invadido por recordações sutis, e vaguei sem pressa em direção às lembranças mais puras de minha infância. Era, assim, como se “algo” invisível, superior, benéfico e tênue tivesse se derramado em minha alma. “Algo” que, obviamente, naquele instante, não soube definir. Naturalmente, que já havia lido à respeito desse local santo, no entanto, foi difícil entender o porquê eu fora tão ardentemente cativado a adentrar naquele tabernáculo. É meridiano supor, que forças cósmicas tenham me compelido àquela visita inesperada, indubitavelmente, uma manifestação clarividente da força incorpórea que vivenciamos no Caminho.

Ao deixar o templo, meu coração foi convulsionado por sentimentos adormecidos, numa explosão de prazer e de gratidão. E, vivificado por esse combustível espiritual, caminhei até Villafranca del Bierzo, final de minha etapa naquele dia.

Sem dúvida, um 1º de maio pontificado por surpresas e sentimentos tão distintos quanto opostos: o manto de morbidez e tristeza que me acompanhara pela manhã transfigurara-se, radicalmente, à tarde, quando eu fora recompensado por outra espécie de emoção, em mais um dos intrigantes mistérios que a Rota nos propicia.

E tem mais:

E tem muito mais ainda...