Diário de um Magro

por  CARLOS ALBERTO

De Astorga a El Acebo - 37,5 km

A Santiago: 221,5 km


Terça-feira, 02 de Outubro de 2001

De fato, fiz a etapa Astorga/Rabanal del Camino, onde me aprovisionei de frutas e suco energético e me preparei para subir os Montes Irago.

Caminhei muito disposto, a partir de Astorga, de onde sai ainda escuro. Tomei café em um bar ao lado de um posto de gasolina na saída da cidade. Já estava no caminho, quando encontrei o texano Miguel e sua mulher, desta vez fazendo a etapa a pé, fazendo lanche à beira da estrada. Ofereceram-me "bread", agradeci, desejei "buon camino" e segui em frente. Em mais ou menos uma hora e meia, venci uns 10 Km, passando por Murias de Recivaldo e Santa Catalina de Somoza. A manhã estava belíssima, o caminho era muito lindo e os peregrinos ao longo da estrada, sob aquela luz da manhã, formavam uma cena tocante. Tirei algumas fotos.

A certa distância de Rabanal del Camino, alcancei o baianinho Gilmar, com quem havia jantado em Leon. Dá gosto ver e conservar com alguém como esse baianinho. É um menino espiritualizado, à procura de aprofundamento de sua espiritualidade, católico crítico, com uma consciência de espiritualidade que o aproxima dos espiritualistas em geral. Depois de Santiago de Compostela, pretende ficar uns dez dias numa comunidade na França. Contou-me, também, que pretende ir à Índia, nesse movimento de busca de aprofundamento espiritual, em seus 23 anos de idade.

Em Rabanal del Camino, não me detive, apenas o suficiente para aprovisionar-me. Subi o Monte Irago sem sentir muito cansaço, turbinado pela beleza natural daquelas paragens desabitadas e misteriosas.

Na famosa e fantasmagórica Foncebadon, bem próximo ao vilarejo, deparei com um rebanho de ovelhas pastando e dois enormes cachorros estavam ali por perto deitados embaixo de um moita. Atrevi-me a assobiar para eles e um dos cães, de pelo baio, o outro era oveiro (pelagem branca e preta), levantou-se e veio em silêncio contra mim, sem dar qualquer latido. Aquela aproximação silenciosa deixou-me em dúvida quanto à real intenção do bicho, já que não me pareceu agressivo. Como o ditado popular diz que cão que late não morde, é bom ficar em guarda contra cão que se aproxima sem latir. Foi o que fiz. Na dúvida, estaquei e preparei meu santo bastão de peregrino para, se preciso, despregar uma senhora bordoada no "perro". Quando parei, ele parou também, e então segui bem devagar, não sentindo qualquer medo. O cachorro voltou a deitar sob a moita de onde meu assobio o retirara. Parece que os badalados cães ferozes de Foncebadon não passam de cães pastores em honesto desempenho de sua tarefa, sem quaisquer das conotações mistificadoras em voga.

Quando estava chegando em Santa Catalina de Somoza, o casal Zé Maria e Solange estavam saindo do vilarejo. Abanei de longe, mas aparentemente eles não notaram. Mais adiante, passando por El Ganso, eles me chamaram de dentro de um bar. Acabei chegando e tomando uma coca-cola com uma rosca massuda tipo sonho. Depois do descanso, continuei a caminhar e já estava saindo de Rabanal del Camino, quando o casal chegou. Apresentei-os ao baiano Gilmar, que deve se dar bem com Zé Maria, porque ambos são a simpatia em pessoa.

Em Foncebadon, olhei o esse pueblito fantasma, principalmente uma estalagem da idade média. Notei que umas duas casas são habitadas. Havia até uma viatura oficial da Junta de Leon y Castilla e um funcionário uniformizado semelhante a um guarda falava com uma velhota que parecia ter retornado do medievo, em seu vestido preto e largo, desleixada, gorda, desdentada, e lenço também preto na cabeça. Aparentemente, mora em Foncebadon. Deve ser resistente.

Deixei Foncebadon sem fazer lanche, com o propósito de fazê-lo, e descansar, na Cruz de Ferro. Continuei subindo o Monte Irago e cheguei à Cruz de Ferro, onde também chegou em seguida um rapaz de Pamplona, extremamente simpático, de quem Zé Maria já me havia falado. Dois franceses ciclistas já madurões também chegaram na mesma hora. Conversamos, ficaram visivelmente satisfeitos de ver um brasileiro falando com eles em francês. Um deles perguntou-me onde aprendera francês. Ao ouvir que o aprendera na Aliança Francesa da minha cidade, comentou orgulhoso que sua filha trabalhava na Aliança Francesa da Birmânia. Esse mesmo francês prontificou-se a tirar uma foto minha colocando a pedra que eu levara de Porto Alegre, com os nomes da Gládis, dos filhos e o meu próprio, para depositar na Cruz de Ferro, pedindo proteção a todos, somando-me a uma tradição mais que milenar. Ao continuar o caminho em sua bicicleta, os franceses, efusivamente, desejaram-me, e à minha família, saúde e felicidade. Os franceses em geral t��m um ar de superioridade, não facilitam muito a aproximação, mas quando vêem alguém valorizando, de alguma forma, a sua "douce France", acabam se tornando muito simpáticos.

Saí da Cruz de Ferro pensando muito, como sempre, em minha pequena tribo de Porto Alegre, com a certeza de que eles acabarão cumprindo bem seu papel nesta vida, sendo pessoas de bem e úteis à sociedade. Da Cruz de Ferro, se continua ainda a subir os Montes Irago, até passar pelo ponto mais alto do Caminho de Santiago, um Posto do Ministério de Defesa da Espanha, que, dizem, será desativado e transformado em refúgio de peregrinos, o que deve ser fantástico lá naquelas alturas. A partir daí, toca descer as montanhas, parte por asfalto e parte em atalhos. Um vento muito forte açoitava o pobre peregrino na descida da montanha. Pretendia dormir no albergue de El Acebo, onde cheguei cerca das 17h30min. Muito simpático, o albergue. A janta foi muito boa: salada mista, filé de terneira com batatas fritas e vinho. Estas notas foram atualizadas enquanto esperava o jantar, depois da rotina de sempre do albergue.

O albergue de El Acebo é particular, e seu proprietário apresentou-me uma funcionária brasileira de Porto Alegre, que mora em Ponferrada e vem trabalhar na copa do albergue. De nome Lúcia Gomes da Silva, veio à minha mesa, fala português com sotaque espanhol. Está desde 1999 na Espanha, morou na Catalunha, onde freqüentou escola de arte em Barcelona, é pintora e assina seus quadros como Lú, tendo, segundo falou-me, feito exposição em Laguna.

Antes de ir dormir, telefonei para a Gládis, falei da personagem, e ela ficou com a impressão de ter conhecido a moça em Porto Alegre, em razão de algumas coincidências.

Castanhal e Agricultor - Villafranca del Bierzo

E tem mais:

E tem muito mais ainda...