De Astorga a Foncebadón

por Aramiz Bussular(trecho do livro: Santiago - O Caminho da Descoberta)

Iniciei a subida de Foncebadón ainda muito triste, sentindo falta dos amigos, que já caminhavam há um dia na minha dianteira. Ao mesmo tempo, estava consciente de um sentimento de maior liberdade para minhas reflexões e renovação da rede de amizades. Astorga está a 800 metros em relação ao nível do mar. Para escalar até Foncebadón, teria que atingir 1.440 metros de altitude. A subida para mim foi bastante longa, porém, não a achava tão íngreme quanto mostravam alguns autores dos livros lidos anteriormente. Nem bem iniciava a caminhada, ao parar para um café, conheci Emmanuel e Odei, dois espanhóis que ficaram amigos. O proprietário do bar, um espanhol que havia residido em São Paulo, empolgou-se com o fato de estar recebendo um brasileiro e decidiu relembrar uma enorme lista de agradáveis momentos vividos no Brasil, ocorridos no ano de 1951. A única forma de interrompê-lo para retomar o Caminho foi lembrando-lhe que aquele era o ano do meu nascimento e que, portanto, não podia lhe corresponder com tanto entusiasmo como desejava, por desconhecer os fatos que relatava.

Contuando minha peregrinação, pude vivenciar momentos muito especiais de introspecção. As condições ambientais sugeriam análise reflexiva, frente a frente com a natureza. Depois da infância na área rural, esta era a primeira vez que estava por tanto tempo em total imersão no reino vegetal. Nas plantas, os fenômenos agora estavam relacionados a cores, vigor, idade, porte, mas também eram visíveis os fatores de vitalidade. O inverso dessa visão era a falta de vitalidade. Do vicejamento e crescimento ao fenecer e à morte. Permeando tudo isso, passei a perceber um perfume diferente de todos os aromas conhecidos pelo meu cérebro. Repetidas vezes, inconformado com os longos quilômetros acompanhados por aquele perfume, embrenhei-me pelo mato em busca de alguma folha, espécie ou qualquer erva que produzisse o precioso cheiro, mas a busca foi infrutífera. O fato ocorreu por inúmeras vezes pelo caminho, proporcionando-me a sensação de paz e companhia.

Foncebadón, o povoado fantasma citado por Paulo Coelho, é realmente um ótimo palco para contos e histórias, porém está bastante mudado. Muitas ruínas já começam a ser restauradas e transformadas em hotéis ou mesmo residências. Segundo a lenda, a situação de ruínas em que se encontra Foncebadón foi motivada pela praga de uma cigana que teve seu filho morto ali e jurou pelo seu sangue que a cidade acabaria em ruínas, o que de fato ocorreu.

Preso a todos esses mistérios, esperava que algo meio esquisito pudesse acontecer naquele lugar. Porém, o fato é que Foncebadón não é mais a mesma em termos de assombração. Olhei para os cães e cheguei até a provocá-los, na tentativa de ver ocorrer alguns dos fatos citados através de leituras, porém eles ficaram inertes. A conclusão é de que os cães ou estavam exaustos ou eram mesmo dorminhocos. Ao cair da noite, porém, Foncebadón virou um palco para bruxo nenhum botar defeito. Despontou uma enorme lua cheia que dava a impressão de que poderíamos tocá-la com a mão, tão perto estava da Terra. Sua luz era tão intensa que pairava sobre as ruínas, tornando o ambiente belo e, ao mesmo tempo, arrepiante. Como se não bastasse, segundo alguns astrólogos andarilhos que dormiram em Foncebadón, naquela noite Vênus proporcionaria um fenômeno que não ocorria há 300 anos. Verifiquei o fenômeno e constatei que o planeta estava quase colado à lua. Ao sair do albergue, fiquei estarrecido, não ao ouvir as conversas e sussurros das pessoas que perambulavam pelas ruelas, mas pelas sombras das ruínas projetadas pelo clarão da lua. Ora a lua era mais intensa, ora parecia que alguma sombra de nuvem transformava a insistente luz em apenas um mero crepúsculo. Todo aquele mágico cenário prendia a gente que precisava dormir mas não abria mão de contemplar o espetáculo da natureza, cujo show continuava pela noite adentro.

Descendo um pouco mais pelas ruínas, tive um encontro marcante com uma figura verdadeiramente mística do Caminho. Trata-se do mesoneiro Henrique. Henrique é proprietário de uma fantástica taberna, a Taberna de Gaia, toda decorada com armas medievais e outros símbolos templários e escudos antigos, entre outros. Mas o principal atrativo da taberna é o próprio Henrique. Faz questão de dedicar horas inteiras reunindo os peregrinos para relatar contos e histórias do Caminho, não economizando argumentos para envolvê-los em intensos mistérios.

Logo que entrei em sua taberna, percebendo que se tratava de um brasileiro, levou-me logo para ver suas fotos com “Pablo Coelho”, indagando sobre os livros do autor e querendo notícias frescas do Brasil. É extremamente prazeroso para o peregrino encontrar tanta hospitalidade e acolhida como ocorre na taberna de Gaia. O folclore, reunido em contos e lendas, representa pequeno oásis pelo caminho, que, sem a menor maldade, serve para transportar as pessoas para uma verdadeira viagem ao mundo da fantasia.

Segundo o taberneiro de Foncebadón, que me brindou com uma lenda sobre a arquitetura da Puente de la Reina, aquele tipo de construção não aconteceu por acaso. Disse ele:

– O caminho que vocês fazem está cheio de símbolos e magias. Se mirar com todo cuidado, verás que Puente de la Reina é o encontro dos dois caminhos de Saint Juan Pie-De-Port com o de Jaca; por isto, para nós, espanhóis, nessa ponte se encontram todos os caminhos. Mas não é só! – prosseguiu Henrique – O Caminho de Santiago tem a forma de uma serpente, e a união dos dois caminhos ali forma exatamente a cabeça de uma cobra, exibindo um rascunho que mostrava o estranho triângulo que dá formato à ponte, exatamente na junção dos dois caminhos, como pode ser visto no mapa anexo.

Desde a chegada, fiquei encantado com a acolhida e as normas do albergue de Foncebadón. Os peregrinos participavam da preparação da ceia, colaborando também com os serviços de apoio na cozinha e na colocação da mesa comunitária. A noite foi emocionante, e a ceia somente teve seu início após uma oração de benção e purificação dos alimentos. Vendo toda aquela espontaneidade e mobilização, fiz-me disponível e consegui um espaço para participar de diversas atividades mais familiares na cozinha. Após a ceia, fomos convidados pela hospitaleira para um momento de oração no santuário ao lado do albergue. Fui escolhido pelo grupo para que fizesse a oração de agradecimentos.

Na manhã seguinte, mais uma vez, houve a oportunidade de união do grupo, já que o café da manhã (doação do albergue) deveria ser preparado pelos hóspedes da noite. É impressionante a força do processo participativo. Era visível nos olhares de ternura e carinho espalhados pela grande mesa a satisfação de doar um pouco do que se tinha para realizar tudo compartilhado. Parabéns ao hospitaleiro de Foncebadón, pela sabedoria em lidar com pessoas.

A primeira reflexão do dia seguinte seria sobre tudo que vi em Foncebadón, tanto em termos de acolhida, orações espontâneas, como também em termos de desprendimento na doação de provisões de alimentos. Nem todos tinham alimento para ofertar naquela mesa, entretanto todos comiam em abundância. Não seria por acaso esta a vida dos primeiros cristãos? Eles não dividiam seus bens com alegria? Não seria esse o processo que serviria de modelo nas organizações?

Aramiz Bussular é autor de Santiago - O Caminho da Descoberta

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