Fiz o Caminho, pela primeira vez, em abril/maio de 2000. Sozinho. Meu filho de 5 anos queria a todo custo me acompanhar nessa aventura. Ponderei com ele que seria melhor eu ir sozinho, primeiro, a fim de conhecer o Caminho e poder
decidir se ele teria condições de me acompanhar. Visto o Caminho e tomada a decisão, comecei a planejar a nova empreitada. Convidei minha esposa que na hora topou a loucura. Marcamos para abril/maio 2001. O problema era: quanto
ele conseguiria caminhar? Já havíamos feito caminhadas de 10 km e ele havia agüentado bem. Mas 25/30 km por dia? Pensei em fazer de bike, levando-o em uma cadeirinha. O problema é que, com 5 anos, já não havia "cadeirinha"
que desse conta do marmanjo. Folheando um livro sobre o Caminho que eu havia comprado no ano anterior, em Santiago, vi uma foto de um casal com uma criança, um pouco menor que meu filho, em um carrinho para bebê. Essse carrinho
tem 3 rodas de bike, cobertura para chuva, freios manuais (como os de bike), enfim, um carro de luxo. Estava definido o meio de transporte.
O meu equipamento já estava pronto. Botas mais do que amaciadas, mochila (70
litros), cantil, etc... Resolvemos que minha esposa iria com uma mochila menor (40 litros). Meu filho iria sem nada. Em Madri compramos o carrinho, os casacos impermeáveis para os dois, tocas, mantas e luvas.
Madri -
Pamplona - Roncesvalles de ônibus. Em Roncesvalles deixei reservado um hotel, para o dia seguinte, onde deixamos a mochila maior e o carrinho, levando apenas o b��sico para a subida dos Pirineus, já que o Mateus não abria mão
de fazer essa travessia. Fomos de táxi até St. Jean. Chovia muito e fazia muito frio. Mdme. Debrill já não estava mais lá e agora existe uma Associação do Caminho que cuida das credenciais e do alojamento. Já começamos "bem"
o Caminho, pois apesar de eu fazer questão de pagar uma credencial (500 pesetas) para meu filho, eles não queriam dá-la de jeito nenhum. Diziam que não era preciso. Para que uma credencial para uma criança? A mesma visão bitolada
que encontrei em Santiago, mas, felizmente, totalmente diferente do que encontrei no resto do Caminho, onde as pessoas viam o Mateus como uma "pessoinha" muito especial.
Infelizmente, pela manhã, o tempo piorou e não
foi possível atravessar os Pirineus, pois todos me aconselharam a não fazê-lo. E não era só pelo Mateus. Esse era o conselho que estavam dando a todos os peregrinos. Muita chuva, vento e frio.
Para não perdermos mais
um dia, pegamos um táxi até Roncesvalles, onde buscamos nossas coisas e iniciamos, finalmente, o Caminho, por volta das 11hs de uma manhã muito fria e chuvosa. Resolvemos ir pela carretera pois não havia condições de irmos
pelos lindos, mas enlameados, caminhos de Navarra.
Assim foi nossa rotina. O percurso era definido dia-à-dia. Dependendo do clima e das informações obtidas no refúgio, na noite anterior, definíamos o trajeto (carretera
ou trilha) e o quanto andaríamos naquele dia. Como no ano anterior, procurei fugir das paradas especificadas no Guia, evitando ter que "correr" para conseguir onde dormir, até porque nosso ritmo era muito lento. Fazíamos, em
média, 25 km por dia, sendo que, desse total, o Mateus estava andando uns 10 km. Quando a trilha permitia ele ia no carrinho para descansar. Quando havia subida ele ia andando. Por sinal essa era sua maior reclamação: "Por
que nas subidas eu tenho que andar??"
Por termos iniciado o Caminho na semana de Páscoa, pegamos alguns refúgios cheios. Em função de nosso ritmo mais lento, estávamos chegando sempre por volta das 19hs. Em Los Arcos já não havia lugar nem no refúgio, nem em hotéis.
Tivemos que dormir no chão, em uma casa particular. Em Viana o mesmo problema. Só que dessa vez não havia nem chão para dormir. Depois de 18,5 km empurrando um carrinho com 25 kg em cima, mais uma mochila com 10 kg, nas costas,
resolvemos ir até Logroño (mais 10 km). Saímos de Viana por volta das 17hs e chegamos em Logroño perto das 20hs. Mais mortos do que vivos!!
Depois, Navarrete, Azofra (ah, Dna Maria Tobia), Grañon, Belorado, San Juan
de Ortega (ah, Marcela) e, por fim, Burgos. Aqui nosso Caminho mudou completamente. Desde Belorado o carrinho já vinha dando sinais de "esgotamento", "tendinite", etc... Em resumo, como diziam os espanhóis, estava "estropiado".
Em Burgos ele quebrou definitivamente (abro um parênteses para dizer que fui até o El Corte Inglés, a fim de sondar a possibilidade de um possível conserto por conta da garantia. Para minha surpresa me disseram que não havia
nenhuma assistência técnica e que nessa filial - de Burgos - não tinham desse carrinho para me dar outro em troca e que por isso, se fosse satisfatório para mim, eles me devolveriam o valor do carrinho - isso depois de mais
de 10 dias usando o carrinho em condições extremas de uso!! Se fosse aqui no Brasil, eu ainda seria processado por mau uso do carrinho!! (risos)
Sem carrinho, fizemos uma reunião para decidir o que fazer: desistir e
gastar os dias restantes em turismo? Seguir a pé? Fizemos as contas e vimos que ainda tínhamos 20 dias até o embarque para o Brasil. O que significava que poderíamos "quebrar" as últimas 10 etapas em duas, ficando, assim, uma
média de 12 a 15 km para andarmos todos os dias. Colocamos isso para o Mateus que prontamente aceitou. Resolvemos, assim, ir de ônibus até Astorga e reiniciar o Caminho dali.
O problema é que, já no primeiro dia de reinício,
teríamos que andar 20,6 km, de Astorga até Rabanal del Camino, pois não havia opções de paradas no meio (o refúgio de Sta Catalina estava fechado e o de El Ganso não tem nem banheiro nem água).
A noite em Rabanal foi
ótima e, como sempre, o Mateus foi o centro das atenções. Quando saímos pela manhã, vimos que o tempo havia mudado. O frio continuava, mas somado a isso, havia um vento fortíssimo e uma chuva intermitente. Foi o pior dia de
caminhada. Somado a tudo isso a subida até a Cruz de Fierro, passando por Foncebadón. O vento batia de frente em nossos rostos e era tão forte que eu tinha medo de largar a mão do Mateus. Antes de chegarmos à Cruz de Fierro,
nossas capas já estavam em verdadeiros farrapos. Para se ter uma idéia das condições climáticas nesse dia, havia um frances à cavalo que havia dormido em Rabanal, também. Ele passou por nós assim que saímos. Em Foncebadón ele
estava dentro de um celeiro com o cavalo, dizendo que o animal estava com a musculatura endurecida e que ele não sabia se teria condições de continuar por causa do frio e que esperaria algumas horas até o tempo melhorar.
Decidimos
continuar, sem parar, até El Acebo (mais 10 km). Achamos melhor continuar andando para não congelar. Chegando em Manjarín, resolvemos parar para nos proteger do frio. O termômetro na porta do refúgio, marcava 5 graus negativos.
A sensação térmica, com certeza, era de mais de 10 graus negativos. Depois de mais ou menos uma hora de descanso, um bom chocolate quente e uma rápida secada nas roupas e corpo, decidimos continuar de uma vez. Ainda faltavam
7km até El Acebo. Continuamos a subida, até que, pela primeira vez, o Mateus pediu arrego. Disse que não aguentava mais andar, que estava com as pernas doendo, estava com frio... Fiquei com muita pena dele, pois havia andado
10km sem parar, num ritmo muito forte pois estávamos, literalmente, fugindo do tempo. Coloquei ele sentado em meus ombros e, assim, acrescentei mais uns 22 kg aos 10 kg da mochila. Depois de uns 3 ou 4 km, já começando a descida
até El Acebo, quem não aguentou mais fui eu. Minhas pernas pareciam ter virado gelatina. Expliquei à ele que estava muito mal e ele prontamente continuou caminhando. Chegamos encharcados, morrendo de frio, mas cheios de admiração
uns pelos outros. Principalmente por essa criança maravilhosa e forte que é meu filho. (mais tarde, em Arca, reencontramos um italiano que já havia feito o Caminho umas 5 vezes - ida e volta - que nos disse que nunca havia
enfrentado um clima tão hostil quanto o desse dia).
No outro dia recomeçamos com mais chuva, mas com a temperatura um pouco mais amena, por volta dos 4 graus positivos. De El Acebo fomos até Ponferrada (16km); de Ponferrada
a Cacabelos (15,3); de Cacabelos a La Portela (15,3).